domingo, 24 de agosto de 2008

Alô polícia! Eu to usando...

Existe uma máxima que afirma que felizes são os ignorantes. Devem mesmo ser. O poder de comparação pode arruinar a vida de qualquer pessoa e transforma-la num ser criterioso demais, exigente demais e, em última e dramática instância, fresco demais. Nós que já fomos estilistas ou assistentes estamos fatalmente fadados a este mal, o de virar o cliente mala.

Depois de ter experiência com tecidos e processos, a pessoa consegue avaliar o que vale ser adquirido pelo valor anunciado (pouca coisa), quanto realmente seria justo pagar por determinada peça (quase nada), como irão se comportar as malhas e tecidos, quais peças ficarão povoadas por bolinhas após a segunda lavagem. Além disso, a pessoa repara nos acabamentos, nas costuras, não compra nada de abotoar que não venha com ao menos um par de botões sobressalentes e não tolera lingerie cor da pele.

Me dei conta do quanto lingerie pele é detestável quando, há poucos dias, precisei recorrer a um antigo sutiã bege. Era um modelo tenebroso cujas alças eram feitas por elásticos grosseiros, a medida das costas era menor que o suficiente, a copa era revestida por algo antiquado e de cor diferente do tecido e o resultado final era uma daquelas peças de roupa que dão tanta vergonha que alguém dispensaria o Johnny Deep só para não passar pelo constrangimento de estar vestindo essa... coisa.

Corri para a minha loja de lingerie preferida para comprar um sutiã novo: alças finas, tecido delicado, costas perfeitas, modelagem confortável. Ainda assim havia ali um elemento essencial que distorcia qualquer harmonia que pudesse haver entre forma e estética: a cor. O mesmo modelo de sutiã usando mesmo tecido em cor uva, azul ou verde claro era infinitamente mais bonito que o desgraçado do sutiã pele.

Lingerie cor da pele é, talvez, o item mais abominante que um guarda-roupas pode esconder e vai contra todo e qualquer ideal de liberdade de movimentos e conforto que a era pós-espartilho tem a oferecer visto que, uma vez dentro de um conjunto de calcinha e sutiã pele uma mulher não deveria atrever-se a sair de casa. A menos que a lingerie seja um conjunto de renda La Perla ou uma peça da Stella McCartney. E então começam as comparações e toda aquela história da ignorância vem à tona.


Deve acontecer o mesmo com quem começa a cozinhar: a pessoa passa a não engolir qualquer coisa. A marca do azeite vira uma questão, a massa só presta se for italiana e até mesmo a validade dos alimentos pode custar a cabeça do cozinheiro. Oras, há alguns séculos atrás comia-se carne putrefata e lambiam-se os beiços.

Não afirmo que todas as mulheres pensem como eu a respeito da tão citada cor de roupa íntima (certamente que Simone, a cantora, acha que essa minha idéia não faz nenhum sentido). Como ex-assistente de estilo de uma marca de lingerie comecei a desprezar sistematicamente toda e qualquer calcinha ou sutiã cor da pele, e nem mesmo aqueles tons achocolatados eu visto. Aposto que muitos homens me apoiariam na causa. Como não quero ser flagrada por aí sem roupa de baixo, tomei a decisão de não não mais usar minha calça de linho branca. E daqui por diante, só uso roupas coloridas com minhas lingeries estampadas por baixo.



:: Betty Friedan, uma das líderes feministas dos movimentos americanos de 60/70, afirma (em entrevista ao O Pasquim de 22/04/71) que jamais queimou-se um sutiã em passeatas.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Sobre calças

Eu dormia metida nas calças do uniforme do colégio durante o inverno. Era uma calça de helanca azul com uma listra branca na lateral e elástico na cintura. Essa parecia ser a melhor função da peça: esquentar (muito). E me poupar daqueles segundos desagradáveis e congelantes em que, às 6 e meia da manhã, você tira o pijama e coloca outra roupa. O corte da peça era provavelmente pavoroso e possivelmente o motivo por eu ter passado anos a fio com somente dois ou três pares de calça pendurados no armário. Além de horrendas, aquelas calças eram também a única opção para freqüentar o severo colégio de padres, que proibia terminantemente pernas de fora, além de ombros, barrigas e pés. Como numa ditadura, o uniforme tenebroso era a tendência imposta para neutralizar qualquer inclinação fashion dentro dos portões da escola.

Findo o ensino fundamental, o uso de uniformes era suspenso e o aluno passava a freqüentar o prédio que ficava do outro lado da rua. Era a promessa de vida em nossos corações, como diria Jobim. Estava decretado o fim do uso da calça de helanca, o fim do constrangimento de ver a calcinha marcando os bumbuns das meninas, o fim do casaco de moletom escondendo as traseiras naqueles dias, era, enfim, a democratização de todas as outras calças, cortes e modelagens.

Mas a liberdade, como se veria, ainda encontrava-se distante dali. A patrulha anti-estilo dos padres era quase tão ameaçadora quanto a dos próprios colegas e aos 16 anos você precisa da aprovação destes. Se de um lado os padres implicavam com as calças skinny por elas serem justas demais, de outro os amigos debochavam do que você estaria escondendo dentro de sua confortabilíssima calça baggy. Os padres barravam qualquer menina usando calças capri, que deixavam à mostra alguns centímetros das canelas, enquanto que os encrenqueiros de plantão faziam de tudo para puxar as cordinhas e amarrações que seguravam na cintura as calças clochard (os meninos realmente amadurecem depois). Até mesmo as aparentemente nada insinuantes calças cargo eram mal-vistas, pois seus bolsos podiam esconder uma série de papeizinhos cheios de cola em dia de prova. Os modelos de calças jeans eram os mais aceitos e em pouco tempo parecíamos todos uniformizados novamente, como que patrocinados pela Levis.

O que os padres não entendiam é que naquela idade nossos gostos se afirmavam e nossas personalidades se solidificavam e as roupas eram, como ainda são, uma forma de nos expressarmos, de nos diferenciarmos, de nos agruparmos em tribos ou até mesmo de nos rebelarmos contra nossos pais. Os roqueiros se reconheceriam através de suas calças largas com correntinhas penduradas, mas as mesmas eram proibidas porque eram armas brancas em potencial. As meninas morreriam de inveja umas das outras numa competição de que calça de alfaiataria tinha o vinco mais marcado e mais um monte de jovens se identificaria uns com os outros, mas não, depois da calça de helanca enfrentamos a era jeans.

Nos anos imediatamente posteriores ao ensino médio, eliminei boa parte das minhas calças jeans do armário. Calça só quando extremamente necessário, e elas tinham de ser no mínimo extravagantes: boca-de-sino colorida, saruel de malha bem levinha semi-transparente ou qualquer outro modelo que me faria ser expulsa sumariamente do colégio.

Durante anos só comprei vestidos e abusava de saias rodadas, de preferência de estampas florais delicadas, algo bem ao estilo pré-feminismo.

Levei anos para entender que os padres não eram contra a moda ou contra as inovações que os estilistas propunham. Eles queriam apenas nos reduzir a estudantes disciplinados cujo dever era obter boas notas e bons resultados nos vestibulares. Na visão deles o que importava mesmo era a carreira profissional que só começaria com êxito se houvesse bom rendimento escolar e para tal qualquer provocação ou distração deveria ser banida, fossem elas mau comportamento ou calças apertadas demais.

No dia em que finalmente compreendi que os padres estavam mais preocupados com números que com a nova tendência de jeans cigarrettes estonadas pude curar o trauma e voltar a usar calças. Nunca mais dormi com elas (salvo raras exceções), mas desenvolvi um olho excelente para encontrar modelos arrojados e desfilar com eles pelos corredores da minha nada católica faculdade.





(esse texto foi escrito após a primeira aula do curso de Jornalismo de Moda, onde aprendemos a identificar modelos e formas. A idéia era escrever um texto sobre o que foi falado: calças. Eis o meu.)